sábado, 30 de agosto de 2008

Identidades vazias

FOLHA DE SÃO PAULO, 07 de janeiro de 2007

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Identidades vazias
Eleger a internet como exemplo democrático é esconder diferenças sociais,
institucionais e psicológicas entre as vidas "real" e "virtual"
Reprodução
Personagens do game on-line "Second
Life" passeiam por uma rua

SLAVOJ ZIZEK

COLUNISTA DA FOLHA

Na edição de 25 de dezembro da revista "Time", o prêmio tradicional de "Pessoa do Ano" não
foi concedido a Mahmoud Ahmadinejad [presidente do Irã], Kim Jong-Il [ditador norte-coreano],
Hugo Chávez [presidente venezuelano] ou qualquer outro membro da gangue dos usuais
suspeitos, mas a "você": a todos e a cada um de nós... usuários e criadores de conteúdo na
web. A capa mostra um teclado branco com um espelho para uma tela de computador onde
cada um de nós, leitores, pode ver seu reflexo. Para justificar a escolha, os editores
mencionaram a transição das instituições para os indivíduos, que estão ressurgindo como
cidadãos da nova democracia digital.
Há coisas que os olhos não conseguem ver, nessa escolha, e em um sentido mais amplo do
que o comum nessa expressão. Se algum dia já houve uma escolha ideológica, esse é um
caso que merece perfeitamente a classificação: a mensagem -uma nova democracia
cibernética na qual milhões podem se comunicar e organizar diretamente, contornando o
controle estatal centralizado- encobre uma série de brechas e tensões perturbadoras.
A primeira e mais evidente das ironias é que cada pessoa que olhe a capa da "Time" não verá
as demais pessoas com quem supostamente se relaciona diretamente, e sim um reflexo de sua
própria imagem. Não admira que Leibniz [1646-1716] seja uma das referências filosóficas
preferenciais dos teóricos do ciberespaço: afinal, a imersão das pessoas no ciberespaço não
se enquadra perfeitamente à nossa redução a uma mônada leibniziana que, embora "sem
janelas" capazes de se abrir diretamente para as realidades externas, espelha em si mesma
todo o universo?
Será que o típico internauta atual, sentado sozinho diante da tela de seu computador, não
representa mais e mais uma mônada sem janelas diretas para a realidade, envolvido apenas
com simulacros virtuais, e no entanto mais e mais imerso na rede mundial, e se comunicando
de maneira sincrônica com todo o planeta?
Uma das mais recentes modas entre os radicais do sexo são as maratonas de masturbação,
eventos coletivos nos quais centenas de homens e mulheres se autopropiciam satisfação
sexual para fins de caridade. A masturbação cria uma coletividade a partir de indivíduos
dispostos a compartilhar uns com os outros... o quê?
O solipsismo de uma diversão estúpida. Seria possível propor que as maratonas de
masturbação são a forma de sexualidade que se enquadra de maneira mais perfeita às
coordenadas do ciberespaço.
Mas isso é apenas uma parte da história. O que se torna preciso acrescentar é que o "você"
que se reconhece enquanto imagem em uma tela padece de uma profunda divisão: eu jamais
me limito a ser a persona que assumo na máquina. Primeiro, existe o (bastante evidente)
excesso do eu como pessoa corpórea "real" além da persona virtual.
Ética virtual
Os marxistas e outros pensadores de inclinações críticas gostam de apontar para o fato de que
a igualdade do ciberespaço é enganosa -ela ignora todas as complexas disposições materiais
(meu patrimônio, minha posição social, meu poder ou falta dele etc.). A inércia da vida real
desaparece magicamente na navegação pelo ciberespaço, desprovida de fricção.
No mercado atual, encontramos toda uma série de produtos privados de suas propriedades
malignas: café sem cafeína, creme sem gordura, cerveja sem álcool... ciberespaço. A realidade
virtual simplesmente generaliza esse procedimento: cria uma realidade privada de substância.
Da mesma maneira que o café descafeinado tem cheiro e gosto semelhantes aos do café sem
ser café, minha persona na rede, o "você" que vejo lá, é sempre um "eu" descafeinado. Por
outro lado, existe também o excesso oposto, e muito mais perturbador: o excedente de minha
persona virtual com relação ao meu "eu" real. Nossa identidade social, a pessoa que
presumimos ser em nosso intercurso social, já é uma máscara, já envolve a repressão de
nossos impulsos inadmissíveis, e é precisamente nessas condições de "só uma brincadeira",
quando as regras que regulam os intercâmbios de nossas vidas reais estão temporariamente
suspensas, que podemos nos permitir a exibição dessas atitudes reprimidas.
Basta lembrar do mitológico sujeito tímido e impotente que, participando de um jogo virtual
interativo, adota a identidade de um assassino sádico e sedutor irresistível. Seria simples
demais afirmar que essa identidade é apenas um suplemento imaginário, uma fuga temporária
de sua impotência na vida real. Na verdade, o que importa é que, porque ele sabe que o jogo
virtual é "apenas um jogo", ele se sente capaz de exibir "seu eu real", fazer coisas que nunca
fez em interações reais -sob a capa de uma ficção, a verdade sobre ele se articula.
O fato mesmo de que eu perceba minha auto-imagem virtual como simples brincadeira me
permite, assim, suspender os obstáculos que usualmente impedem que eu realize meu "lado
escuro" na vida real -meu "id eletrônico" ganha asas, dessa forma. E o mesmo se aplica aos
meus parceiros na comunicação via ciberespaço. Não há como ter certeza de quem sejam, de
que sejam "realmente" como se descrevem, ou de saber se existe uma pessoa "real" por trás
da persona on-line. A persona on-line é uma máscara para uma multiplicidade de pessoas? A
pessoa "real" com quem converso possui e manipula mais personas no computador, ou estou
simplesmente me relacionando com uma entidade digitalizada que não representa pessoa
"real" alguma?

Existência sublimada

Para resumir, "interface" quer dizer exatamente que minha relação com o outro nunca acontece
face a face, que sempre há a mediação de uma maquinaria digital interposta cuja estrutura é
labiríntica: eu "navego", eu me perco sem muito rumo nesse espaço infinito onde mensagens
circulam livremente sem destino fixo, enquanto seu Todo -esse imenso circuito de murmúrioscontinua
para sempre além do escopo de minha compreensão. O obverso da democracia
direta do ciberespaço é essa caótica e impenetrável magnitude de mensagens e seus circuitos,
que nem mesmo o maior esforço de minha imaginação é capaz de compreender -o filósofo
Immanuel Kant [1724-1804] teria classificado o ciberespaço como "sublime".
Pouco mais de uma década atrás, havia um brilhante comercial inglês de cerveja. A primeira
parte reproduzia a conhecida história de uma moça que caminha ao longo de um riacho, vê um
sapo, o toma nas mãos e beija, e o sapo miraculosamente se transforma em príncipe. Mas a
história não acabava assim. O jovem olhava a moça de um jeito cobiçoso, a tomava nos
braços, a beijava e ela se transformava em uma garrafa de cerveja, que ele exibia em um gesto
triunfante.

Assombração na rede

A moça fantasiava sobre um sapo que na verdade era príncipe, o rapaz sobre uma moça que
na verdade era uma garrafa de cerveja: para a mulher, seu amor e afeto (sinalizado pelo beijo)
poderiam fazer de um sapo um príncipe, enquanto para o homem, tudo não passa de um
esforço para reduzir a mulher ao que os psicanalistas designam como "objeto parcial" -aquilo
que, em você, me faz desejar você (é claro que um argumento feminista óbvio seria que as
mulheres, em sua experiência amorosa cotidiana, em geral experimentam a passagem oposta:
beijam um belo jovem e, quando o vêem de perto, ou seja, tarde demais, descobrem que ele é
um sapo...).
O casal real de homem e mulher, portanto, vive assombrado por essa bizarra figura de um
sapo abraçando uma garrafa de cerveja. O que a arte moderna propicia é exatamente esse
espectro subjacente. É perfeitamente possível imaginar um quadro do pintor surrealista
Magritte no qual um sapo abraça uma garrafa de cerveja, com um título como "Homem e
Mulher" ou "Casal Ideal" (a associação com a famosa cena surrealista do burro morto ao piano
[do filme "O Cão Andaluz"] fica completamente justificada, nesse caso).
É essa a ameaça do ciberespaço e de seus jogos, no plano mais elementar: quando um
homem e uma mulher interagem nele, podem se ver assombrados pelo espectro do sapo que
abraça a cerveja. Já que nenhum dos dois está consciente disso, as discrepâncias entre o que
"você" realmente é e o que "você" aparenta ser no espaço digital podem resultar em violência
homicida.

SLAVOJ ZIZEK é filósofo esloveno e autor de "Um Mapa da Ideologia" (Contraponto). Ele escreve na
seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Paulo Migliacci.

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